esquizoativo

o hipocalipse das máquinas desejantes, o golem antiartístico, o ócio e a fofoca por mateus potumati

robert pollard no metro dezembro 8, 2007

Filed under: música,notícias,reviews — Mateus Potumati @ 10:56 am
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a música, dizia nietzsche, é apadrinhada por dionísio, deus grego que simboliza a primazia dos instintos sobre a razão. por dedução, dionísio é também associado à alegria, à bebedeira, ao caos. a começar pelo nome, talvez nenhum estilo musical tenha assumido tanto esses atributos como o rock’n’roll. infelizmente, dionísio costuma ser implacável com a idade. especialmente no rock, envelhecer é quase sempre sinônimo de perder aos poucos a inspiração, de aceitar a inexorabilidade da morte em resignação ou de tentar ignorá-la, sujeitando-se a delírios infames de “juventude eterna”. alguns mortais, porém, teimam em desafiar os deuses. fingindo se entregar à velhice, tratam-na como o oportunista que desposa uma velha senhora apenas para se aproveitar de sua fortuna, enquanto promovem orgias secretas com a mais libertina leveza de espírito.

na última sexta, dia 30 de novembro, pudemos não só presenciar uma dessas cerimônias, como fazer parte dela. seu ministro profano, robert pollard, tinha currículo suficiente: 50 anos de idade adornados por uma cabeleira impecavelmente branca, mais de mil músicas registradas em 25 anos – 21 deles como líder do lendário guided by voices -, dois discos lançados em 2007 (ou, mais exatamente, um disco lançado em duas etapas). se o último deles, standard gargoyle decisions, é apenas mediano, coast to coast – carpet of love, seu antecessor, traz várias faixas que brilhariam nos anos dourados do gbv. não bastasse unir de forma assombrosa qualidade, quantidade e longevidade, pollard ainda se dá ao luxo de lançar pérolas como relaxation of the asshole, disco de spoken word em que ele distribui provocações rasteiras a estrelas pop e à mídia. fora a música, ele ainda tem exposto seu trabalho como artista plástico.

indispensável lembrar, tudo isso foi construído sob o efeito de doses respeitáveis de álcool. a carreira de pollard, já disseram, é a personificação do sucesso etílico, uma aula sobre como transformar o apego à bebida em trabalho. nada mais adequado, portanto, que o álcool anuncie sua entrada no palco: assim que a banda toma seu lugar, as luzes se apagam, e um roadie posiciona à frente da bateria 4 caixas de cerveja e 3 garrafas de tequila. a platéia, já consideravelmente bêbada, vai à loucura, ergue seus copos e se espreme à frente do palco. curiosamente, começa aí um ritual de manifestações mútuas de afeto – entre conhecidos ou não – que durará até o final do show. pouco depois, uma figura grisalha, ligeiramente redonda, usando uma camiseta preta esgarçada, entra, abre uma long neck, oferece um brinde à platéia e bebe quase tudo de um gole só. em seguida, pega o microfone e avisa: “preparem-se, que essa merda vai ser comprida”. são 15 meses sem se apresentar ao vivo e, a começar pelo lugar, nada ali é por acaso. sede de shows históricos em seus 25 anos de existência – entre eles o dos mutantes, em julho passado -, o metro é a casa de shows independentes mais antiga dos EUA. foi lá que, em 2004, o guided by voices encerrou oficialmente sua carreira (a foto do início desde post é de uma das duas noites de despedida).

o clima de celebração, já grande, explode quando as guitarras de “our gaze” ganham as caixas de som. é impossível ficar parado, ou seco: copos de cerveja, usados há pouco para o brinde, vão sendo entornados, transformando a pista numa pia batismal. (este foi o único momento do show que conseguimos registrar. a jana não quis levar a câmera grande, e a bateria da filmadora arriou após 5 minutos de uso. assistam aí e não nos façam sentir piores do que já nos sentimos)

seguem “count us in”, “bally hoo”, “the killers”, “love hate relationship with the human race” e uma seleção abrangente, executada de forma orgânica e precisa por uma banda quase toda de chicago. a empolgação se traduz em generosidade com os fãs. eles vêm de todo lugar: só ao nosso redor, conhecemos gente de austin, nova york, new jersey, dayton (cidade natal de pollard). um grupo de fãs de ontario, canadá, sairia dali direto para a estrada, rumo ao kentucky, destino da turnê no dia seguinte.

robert pollard pula, se contorce, roda o microfone como roger daltrey e chuta o ar em movimentos involuntariamente cômicos, que claramente exigem mais do que seu corpo pode dar. por incrível que pareça, porém, ele não dá sinais de cansaço. em pouco mais de uma hora de show, as cervejas já acabaram. os instrumentistas pouco contribuíram para isso. pollard parte então para a tequila, desta vez oferecendo a garrafa à platéia. a bebida circula de boca em boca, mas sem chegar até nós. também não volta ao palco, apesar de protestos do dono. minutos depois, outra garrafa é aberta. desta vez, graças à solidariedade de um fã mais bem posicionado, também consigo molhar a garganta por conta do tio bob. de cima do palco, porém, ele observa a passagem de mão em mão e ordena que a tequila seja devolvida. diante da demora do público – seus discípulos, bob, você esperava o quê? – ele pede a um dos guitarristas que vá resgatar a garrafa. o tiozinho, careca, alto e muito magro (aliás, a cara do oscar, o mão santa do basquete), larga seu instrumento, arregaça as mangas e vai à beira do palco. diante de sua ameaça em descer, a garrafa finalmente retorna. a terceira, que será aberta em outra meia hora, não será mais compartilhada. um homem não pode correr o risco de ficar sem seu instrumento de trabalho.

quase três horas de show mais tarde, pollard dá um break à banda. ele mesmo não sai do palco, porém, ensaiando covers de the who e guided by voices com o baixista, para comoção imediata dos presentes. quando os outros voltam, eles tocam “pictures of lily” e emendam duas dos guided: “skills like this” (composta em parceria com elliott smith) e “motor away”. quando a segunda começa, sinto um cutucão forte no braço. sem maiores explicações, minha mulher me dá tudo o que tem nas mãos para segurar. antes que eu possa perguntar algo, ela desaparece em meio ao público. só entendo o que está acontecendo quando a vejo em cima do palco, a um metro do arcebispo do etanol. ele a encara entre surpreso e contente, e se aproxima dela, pondo o microfone à sua disposição. o dueto segue até o fim da música inteira, quando o segurança gentilmente põe fim à invasão. o gesto rendeu: mais tarde, um cara reconheceu a jana na banca de discos e nos presenteou com um pôster fodão.

o show durou perto de 3 horas e meia, tempo em que velhos clichês, como o do roqueiro velho e ultrapassado lucrando sobre o saudosismo piegas em torno de si, foi bravamente derrubado. a nós, só resta desejar vida longa ao homem que ensinou a toda uma geração de moleques nerds letrados que beber, na verdade, é ducaralho.